Ser ou não ser no mundo virtual, eis a questão sob a ótica da resolução de conflitos

Nós, humanos, precisamos exaltar e aperfeiçoar aquilo que nos diferencia exatamente enquanto humanos, ainda que dentro de um ambiente tecnologicamente virtual.

O dilema existencial de Hamlet é recolocado diante de um mundo sequer imaginado por Shakespeare ou o seu personagem, onde o ambiente virtual se faz presente nas vidas das pessoas e as relações humanas são cada vez mais intermediadas pela tecnologia. Sob o enfoque da resolução de conflitos, a temática da aceitação da existência e da convivência social virtuais traz ponderações interessantes, as quais buscamos compartilhar e enfrentar juntamente com o leitor.

A possibilidade de existir virtualmente deixa de ser uma completa utopia, considerando-se a viabilização tecnológica em constante desenvolvimento. Tal viabilização, contudo e inevitavelmente, esbarra em um obstáculo fundamental: a nossa humanidade, as características e habilidades próprias dos seres humanos.

Geoff Colvin, ao enfrentar o impasse imposto por um mercado de trabalho que cada vez mais substitui a força de trabalho humana pela robótica e informacional, reflete que as pessoas que dominam e sabem utilizar as suas habilidades mais humanasserão os profissionais mais valiosos. [1]

Para o autor, buscar superar tecnicamente a máquina é uma luta fadada ao insucesso, haja vista o constante aprimoramento da inteligência artificial, com o acúmulo de dados em um nível extraordinário. Assim, o que seria necessário é justamente ir contra uma tendência de nos aproximarmos dos robôs, não nos deixarmos influenciar pelas mudanças que a tecnologia causa nas formas mais primitivas de nos relacionarmos.

Nós, humanos, precisamos exaltar e aperfeiçoar aquilo que nos diferencia exatamente enquanto humanos, ainda que dentro de um ambiente tecnologicamente virtual.

O desafio em questão é particularmente percebido quando, inclusive por um reflexo direto do momento de crise sanitária mundial pela qual estamos passando, precisamos resolver as nossas disputas sem o “olho no olho”, de forma indireta e intermediadapela tecnologia, principalmente pelas plataformas de videoconferência.

Discutir um tema complexo que requer atenção e participação dos ouvintes é uma habilidade bastante louvável para aqueles que a dominam, ainda mais quando uma tela de computador é anteparo entre o locutor e seus interlocutores. No entanto, habilidosos ou não, todos estamos sofrendo com as dificuldades de uso das chamadas por vídeo e a exaustão decorrente delas.

Conforme estudo conduzido pelo Professor Jeremy Bailenson, da Stanford University, longas reuniões virtuais realizadas em plataformas como Zoom, Microsoft Teams e Google Meet estão causando uma fadiga excessiva em seus usuários em razão de um contato visual prolongado e nada espontâneo, bem como de uma exposição da nossa própria imagem enquanto nos comunicamos, como se estivéssemos, na vida real, sendo seguidos por alguém com um espelho para nos vermos falando com outras pessoas, tomando decisões, dando e recebendo críticas. A exaustão também é causada pelo pouco tempo dedicado para nos movimentarmos durante e entre reuniões em sequência e pelo esforço cognitivo que temos de fazer a fim de expressarmos as nossas emoções e reações a serem captadas na tela. [2]

Geoff Colvin fala da necessidade de exercitarmos e aprimorarmos a nossa linguagem não verbal, empatia, compreensão cognitiva e outras peculiaridades da sensibilidade humana [3], as quais, quando se busca resolver diretamente uma controvérsia ou convencer um terceiro de que a sua demanda merece tutela, são deveras importantes. [4]

Porém, quando o exercício é intermediado pelas plataformas de videoconferência, o esforço é muito maior, causando-nos um cansaço adicional, especialmente àquele que resultanaturalmente de uma situação desconfortável de conflito e da dedicação em sua resolução. [5]

Nossos esforços cognitivos em reuniões virtuais são exacerbados, buscamos sorrir mais intensamente, atentarmo-nos para o fundo da nossa tela epara a atenção de nossos ouvintes, se podemos evitar qualquer situação constrangedora ou parecermos de modo mais adequado no vídeo, acenarmos ou levantarmos o polegar para confirmar se estão nos ouvindo, se estão vendo a imagem compartilhada na tela, etc.

Todos esses esforços apontados pelo Professor Jeremy Bailenson como fatores de exaustão (“Zoom fatigue”) também são fontes de uma preocupação bastante característica de quando estamos envolvidos emuma audiência judicial ou procedimentos, por exemplo, denegociação, mediação ou arbitragem, todos em ambiente on-line.

Ao participarmos de uma reunião virtual para resolvermos problemas nossos ou de terceiros, além de nos atentarmos ao bom manuseio de ferramentas disponíveis nas plataformas de videoconferência, tais como colocar o microfone no mudo, compartilhar apenas o documento relevante, inserir ou desfocar um fundo de tela, entrar e interagir em salas virtuais separadas, temos também que superar dificuldades inexistentes no mundo real.

Como engajar e sensibilizar a contraparte para negociar ou compreender os nossos interesses em jogo, sem estar fisicamente no mesmo ambiente? Enquanto mediador, como conseguir passar uma comunicação clara e empática sem saber se os olhares dos mediandos estão voltados e atentos a ele? Ainda, enquanto juiz ou membro de um tribunal arbitral, como garantir o devido processo legal e a isonomia do processo de inquirição de testemunhas se a câmera de vídeo apenas capta uma fração do enquadramento do local onde elas se encontram?

Alguns desses desafios são superados ou parcialmente superados com os esforços cognitivos, como dito, ainda que ao custo de uma exaustão mental, mas sujeitos a alternativas atenuantes de uso das plataformas, também mencionadas no referido estudo de Stanford. Dentre elas: ajustar o posicionamento da câmera de vídeo de modo mais afastado e independente de outros equipamentos do computador, havendo assim uma flexibilidade maior de posicionamento da sua imagem no vídeo e maior naturalidade na sua visualização; usar a ferramenta “hide self-view” para evitar a exposição própria ao se comunicar; e, em alguns momentos de descanso, desligar a câmera de vídeo e desviar o olhar da tela (ou sugerir a todos participantes que desliguem as câmeras), permanecendo em um intervalo apenas de escuta.

Consoante estudos realizados pelo Professor Nale Lehmann-Willenbrock da Universiteit van Amsterdam e pelos Professores Brad Bitterlye Maurice Schweitzer da University of Pennsylvania’s Wharton School [6], fazer uso do humor de maneira apropriada pode auxiliar positivamente nas negociações, uma vez que ele é capaz de induzir emoções que levam a uma melhor comunicação, criatividade, trabalho em grupo e aumento de confiança entre as partes. Técnica essa que pode ser aplicada aos encontros não somente de negociação online, servindo como um “quebra-gelo”.

Na prática, pudemos observar algumas ações que buscam tonar a experiência da resolução de disputas virtual menos traumática e mais conveniente: pausas ao longo da reunião, até mesmo aproveitando o agendamento de outros encontros para dar seguimento ao assunto discutido, o respeito dos participantes à etiqueta de desligar os seus microfones enquanto não estão falando, o que, em termos de escuta ativa, é muito proveitoso. Outrossim, a habilidade e cuidado de um mediador de checar se todos os mediandos estavam o escutando bem, compreendendo o que estava sendo falado e de checar se seria possível ingressar em uma sala separada para reunião privada com uma das partes, sem violar a privacidade daquilo que estivesse eventualmente sendo discutido antes do seu ingresso.

Já com relação à realização de conferências e audiências de instrução, o cuidado dos advogados de disponibilizarem as testemunhas para oitiva em lugar que não permita a interferência das partes ou cuja imagem seja captada por uma câmera de vídeo com angulação ampla ou, ainda, se possível,de um advogado representante da parte interessada na inquirição da testemunha se certificar que esta está em ambiente isolado, além de outras boas práticas e orientações fornecidas pelo julgador e, nos casos de procedimentos arbitrais, em protocolos estabelecidos pelas instituições de arbitragem [7].

Em que pese a pandemia ter testado e incentivado de maneira abrupta as nossas habilidades de uso da tecnologia em diversos âmbitos, principalmente o de consumo e o de relacionamento social, já sabemos que algumas mudanças de comportamento vieram para ficar e os meios de resolução de disputas valer-se-ão cada vez mais do ambiente virtual.

Pudemos verificar os benefícios decorrentes da formaonline dos meios de resolução de conflitos. Além das ferramentas que auxiliam na escuta ativa (chat e função “levantar a mão” como formas de boa comunicação), a redução de custos e tempo é um ganho interessante. Gastos com a locação de um espaço, os serviços de coffee break muito comuns em longas audiências presenciais de arbitragem e o deslocamento dos participantes podem ser suprimidos com uma conexão instantânea na chamada por vídeo. O atraso tolerável, sobretudo considerando a cultura brasileira dos “5 minutinhos” e de se lidar com imprevistos a caminho dos compromissos, também diminuiu na etiqueta das plataformas, dado que o ingresso pode ser feito a partir de diversos dispositivos, dependendo somente de uma boa e estável conexão de rede.

Com a redução de custos e a facilidade de conexão para aqueles que, em se tratando do nosso país, possuem o privilégio de contratar uma banda larga compatível, também há que se falar em uma possível ampliação do uso dos meios consensuais de resolução de conflitos por meio das plataformas online e um consequente processamento de dados que podem contribuir para a identificação de focos de litigiosidade e parâmetros para acordos, auxiliando na redução da judicialização excessiva [8].

Em conclusão, a existência,a convivência social e a resolução de problemas virtualmente não são mais objeto de obras de ficção científica. Aprendemos que é possível ajustar alguns hábitos sociais e os meios de resolução de conflitos, bem como as suas formas de condução, ao ambiente virtual. As características de adaptação e de resiliência que nos distinguemenquanto seres humanos, ao mesmo tempo, ajudam-nos a sobreviver e a coexistir com a tecnologia, permitindo a superação dos desafios ligados ao seu uso e o aproveitamento dos seus efeitos positivos.

O existencialismo de Hamlet ganha uma faceta digital, pondo em xeque qualquer ceticismo sobre a possibilidade de existir, relacionar-se e resolver problemas dentro do ambiente virtual.

Referências:

[1] COLVIN, Geoff. Humansare underrated – What high achievers know that brilliant machines never will. Penguin, 2015.

[2] Vide o estudo disponível em: <https://tmb.apaopen.org/pub/nonverbal-overload/release/1>, acesso em 10 de abril de 2021, bem como notícias acerca de seus resultados, disponíveis em: <https://news.stanford.edu/2021/02/23/four-causes-zoom-fatigue-solutions/?gclid=Cj0KCQjwmcWDBhCOARIsALgJ2QfwoKUzXpV2e_H38yNPdgkQF4Tu2dlXsoAjXid8u35EW7l6jssLR5gaAnSxEALw_wcB> e <https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital/videochamadas-sao-uma-usina-de-exaustao-e-estudo-mostra-os-motivos,70003646089>, acesso em 10 de abril de 2021.

[3] COLVIN, Geoff. Humans are underrated – What high achievers know that brilliant machines never will. Penguin, 2015, pp. 55-68.

[4] Kathleen McGinn e Eric Wilson mencionam o conceito de “social awareness”, até que ponto as pessoas prestam atenção e entendem os motivos e preferências umas das outras, e a relevância que ele ganha ao intentarmos a negociação online, vis-à-vis a existência de normas sociais quando nos comunicamos presencialmente – o que inclui a linguagem corporal, modos e aparência física –, que guiam os nossos comportamentos e facilitam o processo de resolução da controvérsia (MCGINN, Kathleen L.; WILSON, Eric J. How to negotiate successfully online. In: Negotiation 7, n. 3, 2004).

[5] Outra possível fonte de cansaço, em tempos de isolamento social, é o trabalho remoto. A combinação do uso exacerbado de plataformas de videoconferência e do home office pode ser muito negativa, a ponto de causar um estresse extremo ou esgotamento conhecido como “burnout". Conforme pesquisa realizada entre abril e maio de 2020 pelo Banco Original em parceria com a 4CO, para 60% dos brasileiros a experiência do trabalho remoto em virtude do isolamento social é muito cansativa (Disponível em: <https://4co.com.br/trabalho-remoto>, acesso em 18 de maio de 2021). Já outra pesquisa realizada pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em conjunto com a Universidade de Yale mostra que os casos de depressão praticamente dobraram após o início da quarentena e que as ocorrências de ansiedade e estresse tiveram um aumento de 80% (Disponível em: <https://www.uerj.br/noticia/11028>, acesso em 18 de maio de 2021). Tudo isso tendo em consideração que, antes mesmo da pandemia, de acordo com pesquisa conduzida em 2018 pela International Stress Management Association (ISMA) e publicada em 2019, 72% dos brasileiros sofre de estresse, sendo que, desse total, 32% sofre com síndrome de burnout (Disponível em: <https://www.ismabrasil.com.br/ws/arquivos/vivasaude2021.pdf>, acesso em 17 de maio de 2021).

[6] Estes são mencionados no artigo “Is Humor in Business Negotiation Ever Appropriate? Use humor in business negotiation as a way to answer difficult questions and make interactions more memorable” publicado no site do Program on Negotiation – Harvard Law School (Disponível em: <https://www-pon-harvard-edu.cdn.ampproject.org/c/s/www.pon.harvard.edu/daily/negotiation-skills-daily/dear-negotiation-in-negotiation-make-em-laugh-nb/?amp>, acesso em 21 de janeiro de 2021).

[7] Vide, por exemplo, os protocolos e boas práticas publicados pelas instituições da Câmara de Comércio Internacional (disponível em: <https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2021/03/icc-checklist-cyber-protocol-and-clauses-orders-virtual-hearings-portuguese.pdf>, acesso em 9 de abril de 2021), do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (disponível em: <https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/audiencias-remotas>, acesso em 9 de abril de 2021) e da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP-FIESP (disponível em: <http://www.camaradearbitragemsp.org.br/pt/res/docs/camara-ciesp-fiesp-orientacoes-para-realizacao-de-audiencias-virtuais-1.pdf>, acesso em 9 de abril de 2021).

[8] Nesse sentido, TAUK, Caroline Somesom; TAUK, Clarissa Somesom. A eficiência da mediação online no Judiciário. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/eficiencia-mediacao-online-judiciario-23032021#_ftn32>, acesso em 25 de março de 2021.

Autores

Andrea Maia
Founding Partner na Mediar360. Coordenadora do curso de Métodos Online de Resolução de Disputas na Future Law.
Amanda Federico
Advogada Sênior na MAMG Advogados, Professora da pós-graduação da FGV Direito, árbitra e mediadora.